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Às vezes se sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante, outras se afastam, e
deixam de permeio um longo intervalo coeso e fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas
umas sobre outras numa angús- tia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso
olhar uma ampla perspectiva.
Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o arrua- mento. Há casas de todos
os gostos e construídas de todas as formas.
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Vai-se por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela, parede de frontal, humildes e
acanhados, de repente se nos depara uma casa burguesa, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada,
a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados. Passada essa surpresa, olha-se acolá e dá-
se com uma choupana de pau-a-pique, coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga
uma população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas de estilo pouco classificá-
vel, que parece vexada e querer ocultar-se diante daquela onda de edifícios disparatados e novos.
Não há nos nossos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famo- sos das grandes cidades
européias, com as suas vilas de ar repousado e satis- feito, as suas estradas e ruas macadamizadas e
cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os
nossos, se os há, são em geral pobres, feios e desleixados.
Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes, nas ruas, há passeios,
em certas partes e outras não; algumas vias de comu- nicação são calçadas e outras da mesma
importância estão ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem cuidado sobre o
rio seco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma pinguela de trilhos mal juntos.
Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó
lhes empanem o brilho do vestido; há operários de tamancos; há peralvilhos à última moda; há
mulheres de chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se
faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase sempre o mais bem posto não é que entra na melhor
casa.
Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidêmico e no
espiritismo endêmico; as casas de cômodos (quem as suporia lá!) constituem um deles bem inédito.
Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os minús- culos
aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é
que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor
londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita tais
caixinhas. Além dos serventes de repartições, con- tínuos de escritórios, podemos deparar velhas
fabricantes de rendas de bil- ros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos,
mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as
nossas pequena e grande burguesias não podem adivinhar. Às vezes num cubículo desses se amontoa
uma família, e há ocasiões em que os seus chefes vão a pé para a cidade por falta do níquel do trem.
Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de cômo- dos de um dos subúrbios.
Não era das sórdidas, mas era uma casa de cômodos dos subúrbios.
Desde anos que ele a habitava e gostava da casa que ficava trepada sobre uma colina, olhando
a janela do seu quarto para uma ampla exten- são edificada que ia da Piedade a Todos os Santos.
Vistos assim do alto, os subúrbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco,
de oca, engastadas nas comas verde-negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro
ou uma palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção do desenho das ruas põe no
panorama um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gen- tes que as
habitam; e o trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando à esquerda, inclinando-se para a
direita, muito flexível nas suas grandes vértebras de carros, como uma cobra entre pedrouços.
Era daquela janela que Ricardo espraiava as suas alegrias, as suas satisfações, os seus triunfos
e também os seus sofrimentos e mágoas.
Ainda agora estava ele lá, debruçado no peitoril, com a mão em con- cha no queixo, colhendo
com a vista uma grande parte daquela bela, grande e original cidade, capital de um grande país, de que
ele a modos que era e se sentia ser, a alma, consubstanciando os seus tênues sonhos e desejos em
versos discutíveis, mas que a plangência do violão, se não lhes dava sen- tido, dava um quê de
balbucio, de queixume dorido da pátria criança ainda, ainda na sua formação...
Em que pensava ele? Não pensava só, sofria também. Aquele tal preto continuava na sua
mania de querer fazer a modinha dizer alguma coisa, e tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival
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dele, Ricardo; outros já afirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração dos Outros, e alguns mais
ingratos! já esqueciam os trabalhos, o tenaz trabalhar de Ricardo Coração dos Outros em prol do
levantamento da modinha e do violão, e nem nomeavam o abnegado obreiro.
Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infância, daquela sua aldeia sertaneja, da
casinha dos seus pais, com seu curral e o mugido dos vitelos... E o queijo? Aquele queijo tão
substancial, tão forte, feio como aquela terra, mas feraz como ela tanto que bastava comer dele uma
pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas? Saudades... E o vio- lão, como aprendeu? O seu
mestre, o Maneco Borges, não lhe predissera o futuro: "Irás longe, Ricardo. A viola quer teu coração"?
Por que então aquele encarniçamento, aquele ódio contra ele ele que trouxera para esta
terra de estrangeiros a alma, o suco, a substância do país!
E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos afora. Olhou um pouco as montanhas, farejou o
mar lá longe... Era bela a terra, era linda, era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito
onipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela verdura das árvores.
E ele estava ali só, só com a sua glória e o seu tormento, sem amor, sem confidente, sem
amigo, só como um deus ou como um apóstolo em terra ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.
Sofria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aque- las lágrimas que iam cair
no solo indiferente. Por aí, lembrou-se dos famo- sos versos:
"Se choro... bebe o pranto a areia ardente"...
Com a lembrança, ele baixou um pouco o olhar à terra e viu que, no tanque da casa, um tanto
escondida dele, uma rapariga preta lavava. Ela abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu
peso, ensaboa- va-a ligeira, batia-a de encontro à pedra, e recomeçava. Teve pena daquela pobre
mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor. Veio-lhe um afluxo de ternura e, depois, pôs-se
a pensar no mundo, nas desgraças, ficando um instante enleado no enigma do nosso miserável destino
humano.
A rapariga não o viu, distraída com o trabalho; e se pôs a cantar:
Da doçura dos teus olhos
A brisa inveja já tem
Era dele. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar aquela pobre mulher, abraçá-la...
E como eram as coisas? Ele recebia lenitivo daquela rapariga; era a sua humilde e dorida voz
que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe então à memória aqueles versos do Padre Caldas, esse
seu antecessor feliz que teve um auditório de fidalgas:
Lereno alegrou os outros
E nunca teve alegria...
Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não se pôde conter:
Vai bem, Dona Alice, vai bem! Se não fosse, por que lhe pedia bis?
A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:
Não sabia que o senhor estava aí, senão não cantava na vista do senhor.
Qual o quê! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.
Deus me livre! Para o senhor me "acriticar"...
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